Toque da campainha. Final de mais uma aula de Filosofia. Constatando o desinteresse e ausência de empenho de um aluno, pedi para que ficasse mais um pouco e me explicasse as razões para tal relação com a disciplina. A sua resposta, sob a forma de perguntas, foi pronta, abrupta e diferente da costumeira “Para que serve a Filosofia?”. As suas perguntas, surpreendentes e precisas (como todas as boas perguntas) foram: “Afinal, para que é que o stor utiliza estas coisas todas que aprendemos? Porque é que são importantes para si?” Retorqui com uma resposta professoral, canónica e generalista que, a julgar pela sua expressão facial, não foi minimamente satisfatória. Assim terminou a interacção.
Considerado o valor e dimensão filosófica das questões, decidi sobre elas me debruçar e produzir uma resposta reflectida. Recordei Marco Aurélio, o Filósofo-Rei sonhado por Platão, que inicia a sua obra Meditações (Livro I) elencando e agradecendo os contributos que aqueles que o rodearam tiveram na sua formação enquanto cidadão e pensador. De forma análoga, o presente texto busca a apresentação de uma ontogénese filosófica ainda em actualização.
Do presente texto estão excluídas todas as influências decorrentes dos normais agentes de socialização, tais como família, escolas, instituições sociais, amigos… apenas por ausência de enquadramento no tema e nunca por menor importância e impacto em quem sou, no que penso, decido e faço.
Quatro pensadores gravaram em meu espírito aquela que ainda hoje entendo como a necessidade primeira do Homem: a autonomia de pensamento. De diferentes formas e visando diferentes propósitos, Sócrates, Montaigne, Kant e Wittgenstein legaram-me esta certeza: a importância de pensar por si próprio.
De Aristóteles retive um princípio fundamental de ser e agir, o seu Golden Mean: evitar os extremos nos ideais e nas atitudes. Nos Estóicos cedo descobri espíritos solidários. Devo a Marco Aurélio, Epicteto e Séneca as seguintes máximas: não sobrevalorizar o que os outros nos podem tirar e dedicação apenas a coisas que estejam ao meu alcance.
Por contraposição, identifiquei em Schopenhauer o princípio volitivo que dinamizou a minha prática no início da minha vida adulta. A ele agradeço esta descoberta, a vontade está para além do espaço e do tempo mas seguir as suas exigências leva rapidamente à infelicidade.
A procura do conhecimento levou-me a descobrir ideias que enformaram o meu entendimento sobre a sua definição, natureza e possibilidade. Uma voz do século XVI, Montaigne, sussurrou-me: o homem pode descobrir as verdades sobre a Humanidade compreendendo-se a si próprio. Atravessando os séculos, chegou até mim a exigência de Erasmo de libertação do espírito humano de toda a corrupção, superstição e dogma.
A Kant devo uma grande ilusão e uma igual desilusão: o poder especulativo, crítico e libertador da razão e a resignada empatia com a sua afirmação da penultimidade da realidade fenoménica e consequentes limitações da razão.
Dos antigos Boécio e Sócrates retirei o que considero ser o cerne da Filosofia. Filosofo para conseguir uma perspectiva sobre as coisas e para realizar a vida boa através do contínuo auto-exame.
A necessidade da descoberta do verdadeiro potencial da Humanidade foi-me deixada por Emerson que, como sempre, acompanhou Thoreau na afirmação da inquestionável capacidade do homem elevar a sua vida através de um esforço consciente.
A crítica das visões mecanicistas e materialistas do mundo de Bergson, a sua afirmação do élan vital, espécie de ímpeto vital explicativo da evolução e do impulso criativo da Humanidade, ecoaram em mim como a formulação de uma intuição há muito sentida.
O impacto da leitura das Revelações da Morte de Chestov lançou dúvidas fundamentais sobre o Homem e a verdadeira realidade. A sua luta contra as evidências, a defesa do 2+2=4 como princípio de morte e a possibilidade de revelação da realidade apenas através do desespero e agonia tiveram o mérito de me fazer questionar radicalmente toda a Filosofia Ocidental. Não se pode lutar contra a Lógica com as armas da Lógica, nem toda a realidade humana se pode subsumir às exigências do binarismo; eis o que retirei deste polemista russo.
Se hoje dedico a minha vida profissional ao ensino, à formação e à consultadoria filosófica, tal se deve fundamentalmente a Sócrates e ao seu exemplo de uma vida filosoficamente vivida. Os professores que me levaram a ser professor, igualmente marcados por Sócrates O Moscardo, ensinaram-me que o ensino-aprendizagem não é transmissão mas sim inquérito investigativo (John Dewey); que podemos pensar a partir das nossas experiências individuais para entender os princípios universais (Leonard Nelson); que o ensino é provocação, instigação, criação de inquietude e curto-circuito existencial (Oscar Brenifier); que o espanto filosófico e a possibilidade de aprender se escondem mesmo nas histórias mais simples, ridículas ou mesmo absurdas (Nasreddin Hodja).
Concluo evocando Epicuro: "Somente a razão torna a vida alegre e agradável, excluindo todas as concepções ou opiniões falsas que podem perturbar a mente." Eis a minha concepção de Filosofia: questionamento reflexivo orientado para a acção. A Filosofia é-o enquanto prática, promotora da vivência paradoxal entre inquietude e consolo … a medicina da alma.