Para esta sessão de Filosofia para Crianças com o 3º ano, o Vicente foi convidado a escolher um livro das estantes da Biblioteca Municipal de Torres Vedras. A Ana, técnica do serviço educativo da biblioteca, deu uma ajuda e guiou o grupo pela sala infantil e juvenil, e ao assunto de poesia infantil. O Vicente não sabia que existia essa secção e ficou até surpreendido com isso, mas, ainda assim, preferiu escolher um livro em português. A escolha do Vicente foi Rua do Abecedário, de Augusto Múrias, do qual foi lida uma pequena parte, também à sua escolha: «Das letras conhecidas tem as pernas mais compridas, incapaz de forças juntar e de em pé se aguentar. Ao erguer-se valente, sente o corpo dormente e desata a gritar…»
A partir deste excerto partilhado, o grupo foi convidado a desenhar o que tinha percebido.
Um dos alunos apresentou o seu desenho, constituído por letras, uma das letras foi personificada e tinha umas pernas longas e com nuances de cinzento, que mostrava que estavam dormentes. E o desenho tinha «mais algumas coisas sem sentido.» Explorando este «sem sentido» perguntei ao grupo exemplos de outras coisas sem sentido, ao que a aluna M. respondeu com «uma tesoura que não corta», seguindo-se «um lápis que não escreve», «uma caneta que não escreve», «uma afia que não afia» e «uma televisão que não dá».
Mas esta televisão que não dá fez-me exatamente pensar no caso de uma televisão antiga e avariada que tenho em casa e da qual fiz um aquário. O Nemo vive nesse aquário. Assim, parece que estamos perante o caso de uma televisão que não dá e isso não lhe retira o sentido.
O grupo reagiu de imediato apontando que «assim já não era uma televisão»; que «Se a televisão funcionasse e o peixe estivesse lá dentro, avariava. Não era possível.» Ou, como ser coisas diferentes sob o mesmo aspeto era contraditório, «tínhamos de mudar o nome a esse objeto.»
Fazer depender o sentido da função reunia tacitamente o acordo do grupo e uma hipótese de continuar a exploração seria perceber se esta dependência se aplicaria da mesma forma a uma ideia, a um humano, a um ser vivo…
Porém, dirigimo-nos para outras apresentações de desenhos, que mostraram que o par de palavras dormente e valente não podia acontecer em simultâneo.
Acontecia ficarmos dormentes quando deixamos uma parte do corpo na mesma posição durante muito tempo. Por exemplo, «ficar sentado em cima de uma perna durante muito tempo», «dormir na mesma posição durante muito tempo», «quando os pés ficam no ar e não chegam ao chão» ou mesmo «quando se fica com o dedo no ar, à espera de falar, durante muito tempo.» De imediato fiquei a pensar que devia um pedido de desculpas à A., por demorar demasiado tempo a passar-lhe a palavra. Mas ela esclareceu-me que não era ali, na sessão. Era em casa quando queria dizer alguma coisa e os pais só falavam e falavam entre eles. 😌
E o grupo acabou por terminar a sessão reencontrando a pergunta que inicialmente colocou, «O que é a Filosofia?»
Pensar sempre na mesma ideia, durante muito tempo, pode pôr os nossos pensamentos e a nossa mente dormentes e, para que tal não aconteça, podemos «procurar coisas novas na internet», «ler coisas diferentes», «conversar com as outras pessoas», parecendo-nos que dialogar com o diferente possa ser uma muito satisfatória definição de Filosofia e uma ótima forma de não deixar os nossos pensamentos ficarem dormentes.
Vera Fortunato