terça-feira, 21 de agosto de 2012

Da prática filosófica sob o regime estético das artes e cumprimento do ethos filosófico - uma reflexão a partir da leitura de A partilha do sensível* de Jacques Rancière


- Pode a busca cooperativa de uma resposta ser pensada a partir do regime estético da arte de Rancière?

Propomos que o conceito de regime de arte enquanto modo de articulação do fazer, do ver e conceptualização dos anteriores e, em particular, o regime estético da arte como condição de pensabilidade e identificação das artes se apresenta como oportunidade para a revalorização das Novas Práticas Filosóficas, nomeadamente na sua dimensão de dinamização filosófica, ou seja, diálogos de matriz socrática realizados em situação, em público.
A emergência das (Novas) Práticas Filosóficas dentro do regime estético da arte afirma-se não enquanto ruptura mas fundamentalmente como decisão de reinterpretação do que faz a Filosofia e do que a Filosofia faz. Nesse sentido, as (Novas) Práticas Filosóficas são expressão de um tempo e espaço civilizacional anteriormente desvalorizado como a “parte não filosófica” da Filosofia.

- Pode o diálogo filosófico, na sua radicalidade e exigência de presença, à semelhança de uma pintura, escultura ou obra literária, abrir fissuras no consenso e obstaculizar a redução da política à polícia?

Defendemos que o diálogo filosófico não difere da obra de arte nas suas potencialidades de exigência de presença total do espectador/participante, na criação de rupturas que gritam pela sua exploração e doação de sentido e, por fim, a adequação do diálogo filosófico à abertura de múltiplas possibilidades.
O diálogo filosófico, enquanto performance colectiva incoreografável visível através da crítica argumentativa, põe em jogo todos os intervenientes (não há espectadores) e por meio da imprevisibilidade do agenciamento afirma-se como força de desestabilização, de crítica das pretensas evidências e cristalizações do senso comum, de criação e descoberta de novos conceitos e relações e de emergência de sentidos tributários da não intencionalidade colectiva.
Será este momento colectivo de constituição atómica e resultado não antecipável terreno fértil para a legitimação e suporte do que Rancière define como polícia? Não cremos. Pelo contrário, e em casos porventura excepcionais, porque trabalho de problematização e interrogação da actualidade, pode constituir-se como brecha ou semente de brecha na lógica de funcionamento da mesma. A produção de um novo conceito, a descoberta de contradições no discurso legitimador da polícia, o estabelecimento de relações até então invisíveis e não actuantes pode desconfigurar a ordem do sensível tida como natural.
Assim, a produção de litígios nascidos da prática filosófica é uma possibilidade e é possibilidade de introdução de um dissenso entendido como confronto das configurações instituídas pela polícia com algo inaceitável pela mesma: o sujeito político. Existe então a política, o confronto entre sujeito(s) político(s) e a ordem policial.
Desta forma, pensamos identificar o cumprimento do ethos filosófico identificado por Foucault e inscrito na tradição kantiana de um pensamento crítico que toma a forma de uma ontologia da actualidade. Mediante a abertura de um campo de possibilidades, o diálogo filosófico, como trabalho crítico de problematização surge como atitude, como crítica permanente da nossa era. Por um lado, é análise histórica dos limites; por outro lado, nasce a experiência que possibilita a sua ultrapassagem: a “crítica prática de uma transgressão possível”.

Nuno Paulos Tavares
Porto - Portugal                       
*
Rancière, Jacques - Le Partage Du Sensible, Edição/reimpressão: 2000, Editor: FABRIQUE, Coleção: Beaux Livres Lux
Rancière, Jacques - A partilha do sensível - Estética e política, Tradução de Mônica Costa Netto, Coedição: Editora 34/EXO experimental org., 2005 - 1ª edição; 2009 - 2ª edição (Acordo Ortográfico)