#entrevista
A Filosofia para Crianças (FpC) é uma prática viva que acontece, cada vez mais, nas salas de aula do 1.º ciclo. (Assim como em outros contextos, sobretudo bibliotecas ou centros culturais, mas aqui refiro-me ao 1º ciclo.) E considero que é altamente desejável que assim seja. É uma proposta que convida à escuta, ao questionamento, ao pensamento em conjunto.
Mas o que acontece, afinal, quando esta prática perdura numa escola?
Para tentar sentir um pouco dessa vibração real, propus a alguns professores do 1.º ciclo que sempre viram o seu dia-a-dia acompanhado pela Filosofia para Crianças e que têm interesse por este âmbito, que respondessem a uma pequena entrevista sobre esta prática.
Seguem-se as suas breves apresentações. Não formais, sobretudo muito reais.
E depois as suas observações e intuições sobre aquilo que a Filosofia para Crianças é e pode proporcionar a um aluno, a uma turma, a um professor, a uma escola.
Desde o início foi proposto que respondessem às questões que mais lhes causassem ressonância e não necessariamente a todas elas. Por isso, o leitor encontrará não sempre o mesmo número de respostas em todas as perguntas.
Agradeço muito a colaboração e a disponibilidade aos entrevistados. Ao leitor, desejo que aprecie.
Professores convidados:
Natacha Ribeiro é professora do 1º ciclo, tem uma especialização em Ensino Especial e em muitas sessões já teve uma grande vontade de chamar alguns adultos para escutar o que ali se diz.
Fernanda Silva é professora do 1º ciclo e uma das coisas que
mais aprecia é ter um tempo para escutar os seus alunos e de os desafiar a
resolver situações da vida da turma e da escola.
Selma Caetano é professora do 1º ciclo e adora levar aos
seus alunos a beleza do invisível aos olhos, que, embora pareça cliché,
contribui para o cultivo da gratidão e do observar a simplicidade das coisas, refere.
Paulo Gonçalves é professor do 1º ciclo e acredita que,
muitas vezes, as melhores ideias nascem nas conversas inesperadas e espontâneas
com os alunos.
Natacha Ribeiro - A maior diferença entre ser professor de 1.º ciclo e facilitador de Filosofia é, na minha opinião, que o professor transmite novo conhecimento, promove ambientes de construção do próprio conhecimento e desenvolvimento da autonomia, corrige concepções consideradas erradas, orientando os alunos através do seu processo de aprendizagem. No papel de facilitador de FpC é lançar desafios e promover espaços que convidem a refletir e debater/ defender as suas ideias e opiniões de forma democrática, promover o pensamento crítico e o olhar sobre o mundo ao redor, sem apresentar a sua opinião e sem julgar. A semelhança entre esses "papéis" é que, por exemplo, nos conflitos que surgem no dia-a-dia, o professor também assume o papel de facilitador, escutando, procurando todos os pontos de vista e refletindo em conjunto com a turma.
Fernanda Silva - O professor de 1.º ciclo tem um papel mais
diretivo: planifica conteúdos, transmite conhecimentos e avalia competências
curriculares; o facilitador de Filosofia para Crianças atua como mediador do
pensamento, não transmite respostas, mas estimula perguntas e o raciocínio.
Selma Caetano – Ao ser professora de 1.º Ciclo posso opinar,
sugerir e até condicionar os pensamentos/opiniões dos meus alunos, tendo em
conta a discussão em causa (ajuste de valores, conteúdos científicos, etc.).
Como facilitadora não opino, não sugiro, só modero a discussão e tento
organizar/arrumar as ideias que vão surgindo.
Paulo Gonçalves – Por vezes torna-se difícil separar o professor
do facilitador, pois estamos muito “colados” e há a tendência de dar uma aula mais
do que uma sessão.
L. S. - Os largos anos da presença da FpC conseguem observar-se em algo, no dia-a-dia da escola e da sua sala de aula? Em quê?
N. R. - Creio que sim. Os grupos que tiveram
Filosofia acabam por aprender a apresentar e defender as suas ideias/ opiniões
de uma forma mais argumentativa, crítica, criativa, clara e respeitosa, com um
discurso coerente, demonstrando respeito pelos valores democráticos. A FpC
promove o saber ouvir e aceitar outros pontos de vista.
F. S. - Observam-se mudanças ao nível da cultura do
diálogo, nas atitudes das crianças e a mudança na postura pedagógica dos
docentes.
S. C. - Os grupos que usufruem de aulas de Filosofia
têm uma melhor postura perante uma discussão em curso, sabem ouvir melhor os
seus pares e percebem que nem sempre têm de estar todos de acordo.
P. G. - Sim. No espírito crítico dos alunos e sem
vergonha de opinar.
L. S. - Que espaço abre/ permite a FpC e que é necessário numa escola?
N. R. – A FpC permite desenvolver o pensamento crítico, a curiosidade e a capacidade de questionar o mundo à sua volta. A apresentação e debate de ideias, o respeito pelas opiniões diferentes é tão necessária nos dias de hoje, não só na escola mas principalmente face ao mundo em que vivemos. A liberdade de opinião e o respeito pela diversidade são valores que devem ser reforçados na escola, cabendo à família a principal responsabilidade de os transmitir.
F. S. – Na minha opinião a FpC abre espaço para a voz
da criança, espaço para a convivência democrática, espaço para a pergunta e
tempo para a resposta, espaço para argumentar onde é seguro discordar e um
tempo para refletir. Creio que é importante ser implementado, pois é urgente
haver um lugar para a formação integral do ser humano, onde possa pensar por si
próprio, agir com empatia, conviver com a diferença e ser capaz de questionar o
mundo e contribuir com as suas ideias para transformar o mundo.
S. C. – Aprender a discordar com respeito, aprender a
ouvir a opinião dos outros e mudar a sua própria opinião, consoante os
argumentos dos seus pares. Saber que não chegar a nenhuma resposta, também é
válido, mas que toda a reflexão já foi um excelente contributo.
P. G. – A FpC abre espaço para que as sessões sejam dadas por um facilitador, aplicando-se o resultado nas diversas aulas/situações.
L. S. - A FpC assenta no exercício do pensamento crítico, pensamento criativo e pensamento de cuidado. Que outro tipo de pensamento seria bom ser trabalhado? Porquê?
F. S. – Numa altura em que se defende o trabalho colaborativo, porque não promover o pensamento colaborativo, promover a capacidade de pensar com os outros, de co-construir significados, de dialogar não só para expressar ideias individuais, mas para criar algo novo em conjunto.
P. G. – Pensamento histórico. Para que a história não
se repita ou, pelo menos, se reflita sobre ela.
L. S. - Consegue ver a Filosofia para Crianças atravessar para outros campos/ acompanhar os alunos noutros contextos? De que modo?
N. R. – Claro que sim... Em todos os desafios da sua
vida futura. Ao "treinarmos" a nossa mente a procurar/ ouvir/
compreender outros pontos de vista, a observar e questionar o mundo, abrimos
horizontes e isso torna-nos, na minha opinião, mais resilientes, mais
informados, mais compreensivos, mais curiosos, mais gentis, mais exigentes e
mais reivindicativos do nosso lugar no mundo. É como aprender a ler... Quem não
sabe ler aceita a informação como lhe é dita. Ler abre novos mundos, novas
perspectivas e a partir da leitura criamos a nossa perceção do mundo. Assim é
com a Filosofia.
F. S. – No campo da investigação científica criando
comunidades de investigação para responder aos desafios do século XXI.
S. C. – Refletir deve ser transversal a todas as áreas
da sua vida, quer sejam de teor académico, social ou emocional.
P. G. – Sim. No quotidiano (ajudar, intervir,
protestar), ou seja, proporciona-nos ser um elemento ativo da sociedade.
L. S. - Quais as foram as últimas (ou algumas de que tenham sido mais marcantes) temáticas sugeridas pelos seus alunos, nas sessões de FpC?
F. S. – Partimos de uma pergunta sobre “O que é um direito?” Em vez de cada aluno dar uma opinião individual sobre a questão, foram incentivados a construir uma definição comum, discutindo, reformulando e negociando significados. Os alunos trabalharam em grupos e levantaram perguntas em conjunto.
S. C. – Sobre o conflito de Israel x Palestina surgiu
esta questão "Somos mesmo todos iguais?", depois "Há vidas mais
importantes?", "Uma guerra justifica as mortes?", "Numa
guerra há o bom e o mau?". Foi excelente!
P. G. – A dificuldade de colocarmo-nos no lugar do
outro.
L. S. - Na sua ótica, o que melhor caracteriza a FpC?
N. R. – A Filosofia para Crianças é caracterizada como
um espaço de observação, reflexão, discussão e aprendizagem.
F. S. – A Filosofia para Crianças valoriza a escuta
ativa, o diálogo, trabalha a construção de identidade, valores, raciocínio,
promovem o desenvolvimento da linguagem oral e escrita.
Considero muito pertinente o contributo para a formação de cidadãos reflexivos,
responsáveis e capazes de conviver em comunidade.
S. C. – Uma escuta ativa, refletir sobre vários
prismas e o perceber que "a nossa razão" nem sempre está certa.
P. G. – Que as sessões começam num determinado sentido
e acabam de formas totalmente inesperadas.
L. S. - Há alguma característica na FpC que contribua/ vá ao encontro do espírito da educação especial? Qual? Porquê?
N. R. – Eu acredito que sim. A percepção do outro como
uma pessoa diferente do próprio e com um lugar igualmente importante, a riqueza
da diversidade, o saber escutar, aceitar diferentes concepções e diferentes
formas de estar são, na minha opinião, bases fundamentais para a inclusão.
Alunos com especificidades únicas são cada vez mais, as turmas são cada vez
mais heterogéneas, quer no ritmo de trabalho, na maturidade emocional e os
alunos que necessitam da implementação de medidas de apoio são cada vez mais. A
FpC será, com certeza, facilitadora no trabalho do professor, para que todos se
vejam como parte fundamental de um todo, para que todos aceitem a diferença
como uma mais-valia e para que todos atinjam o sucesso escolar.
F. S. – A FpC reconhece e valoriza cada criança como sujeito pensante, independentemente do seu ritmo, das suas capacidades cognitivas, comunicacionais ou sociais. Ela acolhe a diversidade de vozes, modos de expressão e formas de pensar, criando um espaço onde todos podem participar — cada um à sua maneira.
S. C. – Uma criança com dificuldades
de aprendizagem percebe que numa discussão filosófica o seu argumento, a sua
resposta, desde que não seja descabida, tem tanto valor como a opinião dos seus
pares.
P. G. – O respeito pelo outro.
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